Tifanny celebra título da Superliga com Osasco. Wander Roberto/CBV

Uma extensa reportagem sobre uma jogadora trans de voleibol ocupava a mesa de centro das salas de dezenas de milhares de lares norte-americanos quando, na quinta-feira (1), Tifanny Abreu foi a protagonista da final de uma das três ou quatro principais ligas femininas de voleibol do mundo.

A ótima (e enooorme) reportagem da The New York Times Magazine começa assim:

“Em novembro passado (…) a segunda ou terceira melhor jogadora do terceiro ou quarto melhor time da sexta ou sétima melhor conferência do vôlei universitário feminino entrou em quadra em Las Vegas. Ela foi o centro das atenções (…)”

Foi a forma que o repórter Jason Zengerle encontrou para começar a contar que Blaire Fleming é uma atleta qualquer sob o ponto de vista esportivo. Uma das cerca de 6 mil jogadoras talentosas o suficiente para competir na primeira divisão da NCAA, mas indistinguível dentro desse grupo.

Ainda assim, Fleming foi protagonista das eleições norte-americanas. O direito de ela disputar uma conferência irrelevante no pouco valorizado vôlei universitário dos EUA virou assunto nacional. Foram 50 reportagens sobre Fleming só em site de esportes da Fox, calculou o NYT.

Por causa dela, equipes se recusaram a jogar contra a Universidade Estadual de San Jose, pessoas se juntaram para protestar nos jogos do time e, no primeiro dia de trabalho, Donald Trump baixou uma ordem executiva proibindo mulheres trans de competirem na categoria feminina nos EUA. Mesmo os democratas (67%) concordam que o banimento.

Enquanto isso, um feito esportivo incomparavelmente mais relevante de outra mulher trans no vôlei teve bem menos repercussão. Dos três grandes jornais brasileiros, só a Folha contou que Tifanny, uma mulher trans, venceu a Superliga de Vôlei. E dentro de um texto sobre a conquista do Osasco. O Estadão dedicou uma frase ao feito. O Globo, nenhuma.

Uma mulher trans foi protagonista da final da Superliga, diante de 10 mil torcedores no maior ginásio da maior cidade do país, em um jogo transmitido ao vivo pela maior emissora de país. E, exceto na extrema-direita, isso não gerou grande debate.

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Ninguém no Ibirapuera protestou contra sua presença ali, nem sua ex-companheira Tandara Caixeta, que, enquanto suspensa por doping, lançou-se candidata a deputada federal e vereadora com a pauta anti-trans. Tandara, que aliás, celebrou o título do Osasco – especula-se que ela volte à equipe na próxima temporada.

Tifanny foi aceita no vôlei brasileiro, que não a olha mais como uma mulher trans. Ela é a Tifanny, uma jogadora tão alta quanto outras, tão forte quanto outras, que pontua tanto quanto outras. Que faz jogos bons e ruins, lida bem com a pressão (também, pudera), cresce na hora H, mas não merece estar na seleção do campeonato. Tanto que um dos trunfos do Osasco campeão foi a troca 5-1 que a deixava no banco.

A jogadora de 40 anos encarou as ondas de ódio que virava e mexia a atingiam, e matou todas no peito, até que, hoje, essas ondas não passem de marola.

Mas é inegável que a onda está mais forte do que nunca. E dificilmente vai permitir que qualquer outra mulher trans, como ela, siga de pé no esporte.

O exemplo é outra brasileira campeã nacional nos últimos dias, uma tal Ana Caldas.

No caso dela, campeã norte-americana master de natação, na categoria até 45+, para atletas de 45 a 50 anos. Ela venceu cinco provas, de 50 e 100 livre e peito, e 100 medley. Algumas, com grande vantagem. Outras, nem tanto.

Foi o suficiente para iniciar o debate sobre se é justo com as outras mulheres norte-americanas, que uma mulher trans compita na categoria feminina do campeonato norte-americano master.

Mas ninguém questionou se é justo uma brasileira competir o campeonato norte-americano. A consequência é a mesma: tira o espaço no alto do pódio de mulheres nascidas nos EUA.

Da mesma forma, no Brasil ninguém parece ter protestado pelo fato de Nicholas Santos, um dos maiores nadadores da história do país, ainda em forma, ter disputado o Brasileiro Master também neste fim de semana.

Nicholas estabeleceu novo recorde sul-americano da categoria +45 nos 50m borboleta, 23s26, que é índice para o Mundial de Natação e permitiria a ele vencer os 50m livre (repito, os 50m LIVRE) em qualquer categoria no Brasileiro Master. Na categoria dele, com 2 segundos de folga. É justo com os rivais?

A verdade é que a discussão sobre a participação de mulheres trans no esporte nunca foi sobre justiça. Que o diga o exemplo britânico:

Harriet Haynes e Lucy Smith foram finalistas de uma etapa de circuito mundial no mês passado, mas não podem competir em competições britânicas porque ali atletas trans foram proibidas sob o argumento de que as mulheres devem poder desfrutar de “um ambiente mais seguro” com “igualdade e justiça para todos”.

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Acontecem que Haynes e Smith jogam pool, uma versão da sinuca, esporte tradicionalmente misto. Tal qual ao automobilismo, homens e mulheres podem competir entre si, ainda que praticamente só eles tenham espaço na elite.

As desvantagens são culturais: para as mulheres o estímulo é menor, as oportunidades são em menor número, os patrocínios também.

Só agora, com mulheres trans tendo algum sucesso, é que surgiu a questão biológica. Uma tacada de abertura (a primeira do jogo) mais forte, braço mais longo e dedos mais firmes estão entre os argumentos contra elas, rebatidos por um pesquisador do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Joseph Formaggio (belo nome).

Segundo ele, a tacada de abertura mais forte não é suficientemente importante para influenciar um jogo de alto nível e, na sinuca, a competição pode transcorrer a partir de estratégia, independente das diferenças físicas.

No judô, no boxe ou no remo, atletas são divididos pelo seu peso. Mas, em outras modalidades, as diferenças físicas são parte do esporte.

Quando Zhao Xintong, da China, venceu a lenda Ronnie O’Sullivan na semifinal do Mundial de Snooker, na sexta (2), ninguém mediu o braço de ambos, ou a força nos dedos. Assim como O’Sullivan faturou sete títulos mundiais ganhando de atletas biologicamente mais aptos a jogar sinuca. Essa nunca foi uma questão, nem será agora que Zhao é o novo campeão mundial.

A biologia como explicação para o resultado de um jogo de sinuca só aparece agora, quando aqueles que, por princípio, querem proibir a participação de mulheres trans, precisam de argumentos “científicos”.

Também é recorrente a discussão sobre a “puberdade masculina”, que a brasileira Maria Joaquina, da patinação artística, não teve, porque começou o tratamento hormonal antes. Mas isso também é motivo de críticas e avança, entre a direita brasileira, a proposta para que tratamentos hormonais sejam proibidos para menores de 18 anos.

Na Grã-Bretanha, a Suprema Corte recentemente decidiu que o sexo biológico é o único critério para definição de gênero, o que está forçando federações esportivas a adotar também essa regra.

No Brasil, projetos de lei do tipo viraram pauta prioritária de jovens políticos de direita que chegam agora ao legislativo e querem visibilidade nacional, usando para isso propostas que atravessam os limites de seus estados e municípios.

Em São Paulo, Lucas Pavanato (PL) estreou com três projetos de lei atacando direito de pessoas trans e vira e mexe usa a tribuna na Câmara Municipal para atacar esses direitos.  Em Belo Horizonte, projeto parecido já foi aprovado em primeiro turno.

Na Câmara dos Deputados, projetos com esse teor estão travados na Comissão de Direitos Humanos, que segue sob o comando de deputados de esquerda. A pergunta é: até quando?

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